Como ficam as crianças no meio disto tudo?

(Artigo originalmente publicado em Diário da Feira a 17 de julho de 2020)

Foi recentemente publicado um relatório, feito em parceria pela UNICEF e pela UNESCO, sobre prevenção da violência contra crianças. Neste relatório, que contemplou a análise à realidade de 155 países, conclui-se que 88% dos países envolvidos tem leis para a proteção das crianças, no entanto mais de metade destes não as consegue implementar na realidade devido à falta de meios de diversas naturezas.

Setenta e um anos após a Declaração Universal dos Direitos Humanos e 61 anos após a Declaração dos Direitos da Criança (que seria sucedida pela Convenção internacional sobre os direitos da criança, ratificada em 1989 pela ONU) não deveria ser expectável que persistisse a violência, exploração e abuso de crianças, pelo menos, nas atuais dimensões e em países ditos desenvolvidos. No entanto, ao longo das décadas foi-se percebendo que esta realidade se iria cristalizar por muito tempo, até porque a sua evolução não é linear, devido a crises de diferentes ordens, ao crescimento populacional e à assimetria no acesso aos recursos.

A falta de interesse e empenho na resolução dos problemas das crianças, não somente como forma de solucionar problemas de futuros adultos, mas de salvar humanos e a infância destes, é algo crónico. Veja-se, a título de exemplo, o que aconteceu com a crise de 2007/8, em que as crianças foram as maiores vítimas.

Os dados apresentados por este relatório são verdadeiramente assustadores, mesmo que muitos destes sejam apenas estimativas (o que não inviabiliza que a realidade seja ainda pior). No concernente à violência sexual, estima-se que em todo o mundo, 120 milhões de meninas e raparigas com menos de 20 anos já sofreram um qualquer contacto sexual forçado. Neste campo, o texto da Agência Lusa relembra que “os abusos físicos ou sexuais sofridos na infância fazem aumentar em 14 vezes a probabilidade de os homens serem agressores sexuais e 16 vezes a probabilidade de as mulheres sofrerem esse tipo de abusos”. Acrescenta-se ainda que os abusos sexuais, físicos ou psicológicos aumentam 30 vezes a probabilidade de se cometer suicídio em adulto e sete vezes a probabilidade de se estar numa relação íntima com violência, quer como vítima quer como agressor.

Ainda no campo da violência sexual, a ONU realizou um levantamento de 300 estudos realizados entre 2000 e 2017 e concluíram que os abusos sexuais têm uma prevalência média de 14% entre meninas europeias e 6% entre os meninos (esta diferença entre sexos é explicada, entre outros, pela ausência de dados reportados sobre os meninos).

No texto da Agência Lusa que informa sobre o referido relatório, pode ler-se também que “nos números compilados no relatório, estima-se ainda que 40.150 crianças (entre os zero e os 17 anos) são assassinadas anualmente em todo mundo, a maioria rapazes (28.160)”.

O relatório afirma que o número de crianças sujeitas a violência no ano passado é incerto, mas “a melhor estimativa é mil milhões de crianças entre os 2 e os 17 anos”, ou seja, metade das crianças do mundo. Assim, conclui-se que a violência sobre as crianças não está confinada a teatros de guerra.

Embora haja a necessidade de se triangular os dados para se obter uma descrição mais fidedigna da realidade, no respeitante aos cenários de guerra os dados não estão cientificamente confirmados, mas estima-se que existam cerca de 100 mil crianças soldado. Destas, entre 15 e 40% serão meninas, também usadas futuramente como escravas sexuais. Esta realidade poderá verificar-se em pelo menos 14 países.

Outro dado avançado é o de que quase três quartos das crianças entre os 2 e os 4 anos (300 milhões) são regularmente sujeitas a castigos físicos ou violência psicológica às mãos dos seus pais ou cuidadores e um quarto das crianças com menos de 5 anos vive com uma mãe sujeita a violência doméstica.

Na dimensão Escola, tem-se verificado que o acesso à mesma e, principalmente, com qualidade é também díspar. Salienta-se que em algumas valências, a Escola, enquanto instituição, não tem tido sucesso. Por exemplo, no combate ao “bullying”, pois um terço dos alunos entre os 11 e os 15 anos afirma ter sofrido uma forma de “bullying”.

O relatório anteriormente mencionado alerta para a necessidade de “uma ação global para garantir que todos os países têm acesso ao apoio financeiro e técnico de que precisam. A monitorização e avaliação são cruciais para determinar até que ponto os esforços de prevenção chegam a quem deles precisa”. Porém, todos sabemos que do ato da recomendação até à realidade existe um hiato muito grande, principalmente no concernente à colaboração internacional, em que os interesses económicos e de domínio tendem a prevalecer sobre qualquer interesse relativo aos direitos humanos.

Veja-se, a título de exemplo, a hipocrisia do mercado global, onde de um lado do Planeta as grandes empresas cultivam a imagem da sustentabilidade e do respeito pelos direitos humanos, enquanto que do outro lado do Planeta procedem a exploração direta e indireta de pessoas, muitas vezes crianças, recorrendo não poucas vezes a meios abusivos de exploração do meio.

A experiência diz-nos que estes comportamentos bipolares se alteram apenas quando expostos, e em reação o público se mobiliza em massa para pressionar estas empresas a uma mudança de comportamentos. Isto porque a legislação, por si, não é suficiente. Não podemos ignorar que muitos Estados são coniventes com estes comportamentos.

Por outro lado, há a necessidade de se apoiar o surgimento de condições, em diversos países, que extingam a necessidade de as crianças terem de ir trabalhar para se sustentarem e ajudar as suas famílias. Só a criação dessas condições as poderá levar para a escola, contribuir para o seu desenvolvimento saudável e, posteriormente, para o desenvolvimento das suas regiões. No entanto, e considerando que essas condições tardarão a se alterar, cabe a cada um de nós o esforço individual, mas também coletivo, de contribuir para alterar este paradigma. Uma das formas de o fazer é saber o que se compra e as suas origens e agir em conformidade com os seus valores.

Outra forma de contribuir, é exigir que a legislação existente se cumpra e que seja desenvolvida para fazer face à realidade. Mesmo em Portugal. Onde todas as semanas se registam novos casos de violência sobre crianças, muita desta muito grave como mutilações genitais e até, os casos mais mediáticos, de assassinato. 

Para terminar, se as palavras de Antoine de Saint-Exupéry têm muito de verdade quando este afirmou que “todas as pessoas grandes foram um dia crianças – mas poucas se lembram disso”, também é verdade que muitos não se lembram por nunca o terem sido.

Filipe T. Moreira