2020 – Um apelo pelos esquecidos do sistema…

(Artigo orginalmente publicado no Diário da Feira a 5 de junho de 2020.)

É certo e sabido que há, em praticamente todas as áreas de ação, uma discrepância entre as políticas públicas e a correspondência com a realidade da sua aplicação. Daí que o papel dos agentes políticos é (ou deveria ser) fundamental para aproximar as duas realidades, de forma a servir uma sociedade na sua plenitude mais ampla e criando as devidas exceções de forma a surgir as tão afamadas igualdade e equidade.  

No entanto, o sistema não está “oleado” e há interesses não conducentes com os da maioria que tendem a introduzir areias nas engrenagens das políticas públicas. Neste texto refiro-me em particular às políticas relativas aos acidentes de trabalho e às doenças profissionais.

Porém, dado os números que vão sendo publicados, esperava-se uma maior atenção a estas problemáticas. Ora veja-se! De acordo com os dados conhecidos, entre 2010 e 2014, segundo o Gabinete de Estratégia e Planeamento do então Ministério do Trabalho e Solidariedade Social, registaram-se em Portugal 1.017.552 acidentes de trabalho, dos quais resultaram 899 mortes, tendo-se perdido mais de 27 milhões de dias de trabalho. Por outro lado, somente em 2018 morreram 156 trabalhadores vítimas de acidentes laborais, dos quais 7 no distrito de Aveiro. 

Estes números colocam Portugal no topo da União Europeia em matéria de acidentes nos locais de trabalho. Importa não esquecer que estes valores representam apenas parte de uma realidade bem mais grave que afeta milhares de famílias. 

Isto porque a maioria dos trabalhadores não tem conhecimento dos seus direitos, o que faz com que muitos dos acidentes de trabalho não sejam reconhecidos como tal. 

Todavia, se no caso dos acidentes de trabalho ainda se consegue ter uma noção da realidade do problema, no respeitante às doenças profissionais a ausência de estatísticas globais é preocupante e não permite fazer um quadro realista.

A própria Direção Geral da Saúde (DGS) assume que “as doenças profissionais e os acidentes de trabalho são os principais efeitos negativos da relação trabalho/saúde. Outros efeitos são também valorizados, como as doenças ligadas ou agravadas pelo trabalho, embora de maior dificuldade de quantificação”.

No entanto, há vários fatores que impedem os trabalhadores de usufruírem dos seus direitos. Como seja: a já referida falta de conhecimento sobre a legislação que o  deveria proteger; o facto de a legislação não reconhecer todas as doenças que são efetivamente causadas pela atividade profissional; o facto de as seguradoras tentarem ao máximo afastar-se das suas responsabilidades; a burocratização excessiva do sistema que tende a prejudicar o trabalhador; 

E o facto de o trabalhador, não obstante, de estar fragilizado pela situação sensível em que está, ainda ser deixado praticamente sozinho na batalha por fazer valer os seus direitos.

Sobre este último facto, importa salientar o artigo na revista científica “Laboreal” da investigadora do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto, Vanessa Rodrigues, que refere nas suas conclusões que “o trajeto formal pós-sinistro está previamente traçado nos imperativos normativos, no entanto, os sinistrados percorrem-no não raras vezes quase às escuras”. A Investigadora refere ainda que o “sinistrado parece atravessar o seu percurso pós-sinistro, muito frequentemente, como um peão que vive processos de fragilização a vários níveis nesta trajetória de contactos com as instituições… Verifica-se a inexistência de uma instituição de tutela pública que atue, de forma sustentada, no sentido do acompanhamento de todo do processo (em certa medida, acontece, por exemplo, na Bélgica, com o Fundo de Acidentes de Trabalho).”

Daí a maior importância da Associação Nacional dos Deficientes Sinistrados no Trabalho que entre 2012 e 2017 prestou apoio a 17.584 pessoas vítimas de acidente ou doença adquirida em contexto laboral, realizando no mesmo período 355 visitas domiciliárias e hospitalares a associados que se encontram acamados.

 Ainda acerca da ANDST importa referir o excelente trabalho que tem desenvolvido no distrito de Aveiro, em particular no município de Santa Maria da Feira onde tem dois centros de atendimento (um em Santa Maria da Feira e outro em Sanguedo) que já retomaram o atendimento após o período de confinamento causado pela Covid-19.

Importa assim, simplificar a vida de quem já está naturalmente fragilizado. Tornando a legislação mais “amiga” do Trabalhador, simplificando os processos e criar mecanismos de ajuda intermédia aos trabalhadores que ficam muitas vezes sozinhos nesta batalha, mesmo que a maioria não tenha literacia suficiente para perceber como agir. 

Para que isto seja uma realidade, é preciso que sindicatos, partidos e opinião pública trabalhem em conjunto ou então a problemática vai-se manter.

Filipe T. Moreira