Alguns apontamentos sobre as aplicações móveis para controle da Covid-19

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Após sucessivos atrasos e um parecer da Comissão de Proteção de Dados com algumas críticas, essencialmente no respeitante à possibilidade do comprometimento da privacidade dos utilizadores, foi finalmente disponibilizada a aplicação portuguesa de rastreio à Covid-19, designada por Stayaway Covid. Esta foi desenvolvida pelo INESC TEC em parceria com o Centro Nacional de Cibersegurança, com Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, a Keyruptive e a Ubiridere.

Embora o mote inicial para este artigo seja a aplicação portuguesa, que tem tido ampla divulgação nos media e nos órgãos institucionais públicos, a reflexão que aqui apresento é mais alargada e tentarei não tomar partido, até porque a aplicação é de uso voluntário. Porém, se esta se tornasse de uso obrigatório, aí, tomaria, evidentemente, uma posição, até porque em certos países onde o uso foi generalizado desde o início da pandemia, os resultados foram contraditórios.

Posto isto, apesar das preocupações com a proteção dos dados pessoais do utilizador serem as mais mediáticas, em teoria poderiam ser ultrapassadas. Isto porque a generalidade destas aplicações funciona de forma descentralizada, em que os dispositivos individuais dos utilizadores comunicam por Bluetooth. Ou seja, o utilizador instala a aplicação no seu telemóvel, cria uma conta e liga o Bluetooth. Assim que este passar por outro utilizador da aplicação, os dois telemóveis comunicam entre si e os dados ficam registados apenas nesses dispositivos móveis. Caso um destes utilizadores seja infetado com o vírus, todos os utilizadores que estiveram próximos deste receberão uma mensagem, aquando da entrada dos seus dados na aplicação.

Como os dados ficam essencialmente gravados nos próprios telemóveis, ou seja, de forma descentralizada, as principais preocupações com a privacidade deixam de existir. No entanto, sabemos que haverá sempre o risco de estes dados serem acedidos por terceiros. Porém, ainda sobre a questão da privacidade, há dados que indicam que uma percentagem de cidadãos não se importa de, neste caso em concreto, perder alguma privacidade. Aliás, segundo um estudo divulgado pelo The Guardian em abril deste ano, 97% dos utilizadores de aplicações móveis não lê os termos de serviços quando as instala nos seus dispositivos.

Saindo da esfera da privacidade e assumindo que as preocupações sobre esta estariam totalmente acauteladas, importa referir que para estas aplicações terem um desempenho satisfatório têm de funcionar em segundo plano e estarem sempre ativas. Ou seja, manterem-se em funcionamento mesmo quando o utilizador está a operar noutras aplicações ou o telemóvel está em modo stand by. A acrescentar, não podem consumir muita bateria ou então os telemóveis estarão menos tempo ligados e, evidentemente, o rastreamento será menor. Quanto a isto, sabemos que algumas das aplicações desenvolvidas até ao momento apresentam estas falhas, facto que reduziu a sua eficiência.

Imagine-se agora que as aplicações desenvolvidas superam também estas dificuldades.

Os dados mais recentes da União Europeia datam de 2017 e mostram que 43% da população dos estados membros tem competências digitais insuficientes e que 17% não tem mesmo qualquer tipo de competência digital, não utilizando ou utilizando de forma diminuta a internet. Há ainda discrepâncias entre os vários países e entre zonas rurais e urbanas, no respeitante a estes dados, pelo que aplicações idênticas podem ter resultados diferentes consoante o país e até a região.

A somar a estas questões temos ainda o acesso díspar a smartphones (telemóveis inteligentes) pela população, sendo as camadas mais pobres da sociedade e, principalmente, os mais velhos quem menos utiliza esta tecnologia, ficando automaticamente excluídos da utilização das aplicações móveis.

Assim, percebe-se que uma percentagem relevante da população europeia fica de fora do acesso às aplicações móveis de controle da Covid-19. Isto é sobejamente importante quando se sabe que para garantir a eficácia destas aplicações, tem de haver uma utilização generalizada pela maioria da população. De acordo com Floridi (filosofo e investigador na área das tecnologias sediado na Universidade de Oxford), por exemplo, no Reino Unido, uma aplicação deste género é inútil se for usada por 20% ou menos da população. A efetividade do software é alcançada apenas quando cerca de 60% da população descarrega e utiliza a app.

Desta forma, logo à partida estão equacionados vários fatores que podem contribuir para dissipar a eficácia deste tipo de aplicações.

Imagine-se agora que todas estas questões técnicas e de competências estavam ultrapassadas e que a aplicação seria de uso obrigatório particularmente para servir de passaporte para a mobilidade intra e interestadual. Neste caso, ter-se-ia de lidar com eventuais “ludribiações” do sistema, nomeadamente desligar a aplicação ou telemóvel quando na presença de outras pessoas, ou, por exemplo, deixar o telemóvel em casa (sim, porque a app só é eficaz se o utilizador andar sempre com o dispositivo). Todavia, a obrigatoriedade da utilização destas aplicações remete-nos para questões éticas, liberdade e de segurança que na União Europeia dificilmente passariam.

Então, a solução poderia ser o encorajamento para a utilização da aplicação, designadamente através da atribuição de prémios ou incentivos. Esta alternativa também indicada pelo anteriormente referenciado Professor Floridi poderia ser exequível e bem-sucedida, no entanto, não podemos ignorar os constrangimentos supramencionados, ligados ao acesso à tecnologia, entre outros.

Posto isto, não se está a colocar em causa o facto de a tecnologia poder ajudar, que realmente pode, mas há sempre a necessidade de pôr todos os dados em “cima da mesa”, analisá-los e discuti-los de forma aberta e descomplexada, principalmente, tratando-se de questões de saúde pública, em que não se pode enviesar a discussão ignorando parte da realidade. Aliás, especialistas indicam mesmo que uma aplicação móvel pode ter um efeito contrário, causando divisões sociais e potenciando falsas sensações de segurança. Quero com isto dizer que as aplicações móveis devem ser sempre uma parte da estratégia e não a estratégia em si.

Em jeito de apontamento final, importa referir que todas as linhas de ética, privacidade e segurança que forem violadas sob pretexto de combate à pandemia da Covid-19 dificilmente voltarão ao seu estado original, pelo que todos os passos devem ser dados com cautela e sem o afunilamento da discussão política tantas vezes exacerbado pelos media nacionais.

Filipe T. Moreira